Bem... Será difícil conseguir alguma vez descrever adequadamente a experiência de ler este livro. Estou um pouco sem palavras, não por não saber o que dizer, mas por ter tanto para dizer que nem sei como articular tudo isso. Bom, talvez também por não saber o que dizer, já que este é daqueles livros que nos fazem, acima de tudo, sentir - sentir tanto que é impossível passar para palavras o que sentimos. Recostem-se à cadeira ou sofá, que sobre este livro eu tenho muito, tanto a dizer... Esta review vai ser um pouco diferente do costume, porque gostava de reflectir sobre algumas questões pelo meio e não tanto falar apenas da obra em si.
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A Little Life é um título bastante adequado à história, já que o livro é, em si, uma pequena vida - em 720 páginas mostra-nos a vida de quatro amigos, centrando-se acima de tudo num deles: Jude, conhecendo-o como o resultado de um passado extremamente traumático. Não me perguntem sobre o que é o livro, não há resposta linear: o livro é sobre tudo, não é sobre nada em específico, é efectivamente uma pequena vida a passar com o tempo e com as páginas. É "só" isso, se não fosse ser muito mais que isso - é um livro tão cru, tão autêntico, tão pesado, tão cheio de dor, tão digno de dar voltas ao estômago. Num comentário que deixei num dos meus updates na leitura deste livro no Goodreads, disse que este livro era um constante "acho que cheguei à pior parte, só pode melhorar a partir daqui..." - sem nunca chegar a melhorar. De alguma forma o livro conseguiu sempre superar aquilo que eu achava que era o pior. Conseguiu piorar o que já era pior, e piorar ainda mais, e piorar mais um pouco. Foi uma história dolorosa. E é bastante gráfico em certas partes, por isso não é um livro que se recomende a toda a gente.
But what was happiness but an extravagance, an impossible state to maintain, partly because it was so difficult to articulate? He couldn't remember being a child and being able to define happiness: there was only misery, or fear, and the absence of misery or fear, and the latter state was all he has needed or wanted.
O livro está muito bem escrito. Estava com medo por ser tão longo, mas conseguiu cativar-me em quase toda a história; a escrita em si é bastante bonita. Está escrito na terceira pessoa e acho incrível como ainda assim consegue fazer-nos sentir tanto do que as personagens estão a sentir. Mais ainda depois de ter lido uma entrevista de 2015 com a autora que me fez pensar na questão deste livro se centrar num grupo de homens, já que Hanya acha que eles têm um vocabulário emocional mais pequeno que as mulheres, e devo dizer que concordei bastante com o ponto de vista dela. Deixo aqui o excerto do que ela disse sobre esta questão:
But I do think that men, almost uniformly, no matter their race or cultural affiliations or religion or sexuality, are equipped with a far more limited emotional toolbox. Not endemically, perhaps — but there’s no society that I know of that encourages men to put words to the sort of feelings — much less encourages their expression of those feelings — that women get to take for granted. Maybe this is changing with younger men, but I sometimes listen to my male friends talk, and can understand that what they’re trying to communicate is fear, or shame, or vulnerability — even as I find it striking that they’re not even able to name those emotions, never mind discuss their specificities; they talk in contours, but not in depth. But in order to name emotions, you have to be taught to name them. (...) In A Little Life, one of the things I most enjoyed exploring is how these men’s friendships, while close by anyone’s definition, are also built upon a mutual desire to not truly know too much. Again, I’m not saying that’s a bad or good thing — one needn’t confess everything to a friend to be known by him — but I do think that a friendship between two women (once again, for better or worse) is yoked by shared confessions.
Não tinha pensado tão a fundo neste ponto mas lembro-me de, num momento ou outro a meio da leitura, ter pensado superficialmente no quão bem me estava a ser expressado um sentimento de um ponto de vista de uma personagem masculina (e quão estranho isso era) - sei que pode soar parvo, mas isto que ela descreve eu sinto muito na vida real. E mesmo assim não posso deixar de concordar que simultaneamente me pareceu uma dinâmica muito masculina na perspectiva de que efectivamente estes homens não sabem quase nada sobre a vida uns dos outros. Se pudesse colocava tudo o que ela disse aqui, mas este post já vai suficientemente longo (com tanto ainda por dizer), pelo que deixo o convite para lerem a entrevista na íntegra porque vale a pena.
Não vou dizer que o livro é 100% perfeito, achei que se foi tornando um pouco repetitivo e talvez isso tenha surtido um efeito contrário ao que era suposto. Comecei a sentir uma certa dessensibilização: às tantas a história estava a expor-me tanto a situações dolorosas e traumáticas que eu comecei a deixar de sentir tanta empatia pela personagem e pelas suas dores, e comecei a pensar apenas: ok, já percebemos que é mesmo muito mau e que estás a sofrer mesmo muito, e que precisas de fazer mesmo isto vezes sem conta para te sentires melhor. Não me desapareceu a empatia por completo, continuou a ser uma leitura dolorosa e esta dessensibilização meio que ia e vinha; pelo que num momento estava cansada de ler sempre a mesma fórmula de sofrimento, mas no outro já estava encostada a um canto a chorar e a querer deixar este livro no congelador, como o Joey em Friends, porque estava a ser demasiado para aguentar.
Outro aspecto positivo é que achei este livro muito bem construído de um ponto de vista psicológico. A pessoa em que Jude se tornou após um passado tão doloroso, tão cheio de trauma, é muito realista, atrevo-me a dizer que é uma das personagens mais bem construídas com base no abuso que viveu. No entanto, achei que houve algum exagero no que toca à vida dele. Se calhar falo de um lugar de imenso privilégio, mas é possível que uma pessoa tenha tanto, tanto azar? Em tudo? Umas coisas seguidas às outras? Sei que sermos criados e educados em determinado ambiente não dá propriamente azo a que existam oportunidades de crescimento em ambientes melhores (apesar de isso até ter acontecido), mas custa-me um pouco acreditar que de sítio para sítio exista sempre um monstro semelhante ao anterior. Da mesma forma, não consegui compreender por vezes a inacção por parte de outras personagens; entendo o quão complicado seja agir e ajudar, mas quando se passa uma vida inteira a ver alguém passar e experienciar pelo mesmo, não é natural que exista eventualmente um ponto de "explosão", um ponto de viragem, um limite da tolerância à frustração? Neste livro pareceu não existir muito disso, o que acho um pouco estranho para pessoas que têm tanto amor e preocupação por alguém.
(...) he was worried because to be alive was to worry. Life was scary; it was unknowable. (...) Life would happen to him, and he would have to try to answer it, just like the rest of them. They all (...) sought comfort, something that was theirs alone, something to hold off the terrifying largeness, the impossibility, of the world, of the relentlessness of its minutes, its hours, its days.
Agora, infelizmente, tenho de dizer que a minha opinião acerca deste livro decaiu um bocadinho depois de ler a entrevista que referi anteriormente. Uma coisa que me deixou, em certos momentos, frustrada na história foi perceber que uma personagem que precisava tanto de ajuda profissional, nunca a conseguiu. Nunca conseguiu viver dias melhores porque nunca teve a ajuda para isso. E eu achava que esta era uma posição escolhida pela própria personagem - e relevava a minha opinião e compreendia essa escolha, porque nem toda a gente se sente confortável necessariamente para ter o acompanhamento de um psicólogo e/ou psiquiatra, ou nem toda a gente acredita ou espera que isso ajude de facto. E está tudo bem com isso.
Mas depois li a entrevista e percebi que esta posição vem da própria autora. E ler algumas das linhas que ela referiu deixou-me um tanto ou quanto confusa e um pouco revoltada com a posição que defende:
As for the limits of therapy: I can’t speak to them, only that therapy, like any medical treatment, is finite in its ability to save and correct. I think of psychology the way I think of religion: a school of belief or thought that offers many, many people solace and answers; an invention that defines the way we view our fellow man and how we create social infrastructure; one that has inspired some of our greatest works of art and philosophy. But I don’t believe in it — talk therapy, I should specify — myself. One of the things that makes me most suspicious about the field is its insistence that life is always the answer. Every other medical specialty devoted to the care of the seriously ill recognizes that at some point, the doctor’s job is to help the patient die; that there are points at which death is preferable to life (that doesn’t mean every doctor will help you get there, of course. But almost every doctor of the critically sick understands the patient’s right to refuse treatment, to choose death over life). But psychology, and psychiatry, insists that life is the meaning of life, so to speak; that if one can’t be repaired, one can at least find a way to stay alive, to keep growing older. (...) But I’m not convinced. However: maybe there is in fact a therapist or psychiatrist out there, who thinks that life is, for some people, simply too difficult to keep pursuing; who will give a suicidal patient permission, as it were, to die.
Embora concorde que existam casos que possam não ter propriamente nenhuma perspectiva de recuperação - embora também acredite que nesses mesmos casos a terapia pode ter, em si mesma, efeitos paliativos -, equiparar uma ciência validada por estudos rigorosos a uma simples crença e dizer basicamente que psicologia é uma treta já é grave por si só; mas mais grave se tornou a autora proferir as últimas palavras e afirmar que espera que exista algures um terapeuta ou psicólogo que dê permissão a um paciente para se suicidar. Não achem que a minha opinião é enviesada por ser formada na área; tenho falado muito nos últimos tempos com uma amiga do curso sobre certos elementos hipócritas da Psicologia e como muitas vezes tenta empurrar a pessoa numa direcção que nem sempre tem de ser a mais certa, só porque é a mais socialmente aceitável.
Mas acho que para argumento basta o facto de Psicologia ser uma ciência, repito, C-I-Ê-N-C-I-A, e não uma doutrina que alguém resolveu inventar simplesmente porque sim. Isto é o mesmo que dizer que a Medicina é um monte de balelas que não resultam com ninguém. Não só não consigo concordar com a visão da autora como acho grave que por detrás de uma história seja isto que ela esteja a tentar passar - que não vale a pena procurar ajuda profissional porque a psicologia é uma crença e não resulta, e se uma pessoa está para lá de remédio e não acredita nisso, então (segundo o que ela diz) mais vale só morrer e pronto. No mínimo, acho que se deve sempre tentar.
Apesar de tudo isto, este livro é uma grande obra de arte escrita, foi não um, mas vários socos no estômago e é um livro que vai ficar comigo para sempre. Volto a dizer, não é um livro que se recomende a toda a gente, muitas vezes tive de pousá-lo e parar de ler porque a mágoa estava a tornar-se insuportável. E apesar de achar que a vida da personagem foi um pouco exagerada, não duvido que existam muitas, tantas, demasiadas pessoas como ela pelo mundo... E isso consegue tornar tudo ainda mais sôfrego.
Se acharem que aguentam um livro destes, vão com força. A sua leitura vale muito, muito a pena. É um dos livros mais bonitos que já li, da maneira mais triste que já experienciei.
(...) all along he had been waiting for some sort of punishment for his arrogance, for thinking he could have what everyone else has, and here--at last--it was. This is what you get, said the voice inside his head. This is what you get for pretending to be someone you know you're not, for thinking you're as good as other people.
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Opiniões sobre este livro? E outra coisa: gostam mais deste tipo de publicação, com mais pesquisa e reflexão, ou é melhor limitar-me à minha opinião do que consumi, sem mais? Acho que este post ficou super longo, mas senti que depois de ler a entrevista precisava de falar de outros aspectos que lá foram mencionados.